Personagens
O que para mim é apaixonante em personagens é que eles são reais. Coerentes, consistentes, vivos. Ao contrário das pessoas que são, muitas vezes, máscaras construídas por amadores, nem sempre bem intencionados. Por isso, a gente se machuca o tempo todo. Porque acredita na ficção ruim de pessoas de carne e osso. Inclusive na ficção improvisada por nós escritores, no dia a dia. Sábado, 04 de julho, dei aula na Escola de Séries sobre criação de Personagens. Fiz a partir de quem entende. Sófocles, Shakespeare, Steinbeck, Nora Ephron, Vicent Gillingan. Os participantes estiveram no Seminário Internacional de Séries que se encerrou na quinta anterior e a animação estava alta. É bom passar oito horas trabalhando sobre personagens como Antígona, Próspero, Cathy Trask, Sally Albright e Harry Burns para, ao final, identificar a maneira pela qual Jesse e Walter foram construídos. Quando Gillingan criou o projeto de um professor de química que decide fabricar metanfetamína ele sabia que estava desenhando uma tragédia que marcaria o gênero? Provavelmente. Virar traficante para escapar da morte é de uma hybris tão clara que a dificuldade não é decidir o final. A dificuldade é criar uma trajetória consistente para o que resta de vida a esse personagem. É criar uma teia de ações entre os personagens que sustente o arco do protagonista. Para isso, é necessário que cada personagem seja o melhor possível dentro do seu perfil. Walter White gosta de fazer de forma perfeita o que ele sabe fazer bem e se ressente da incompetência, da mediocridade de quem não sabe. Perfeccionista e intolerante. Boas características para um personagem trágico. Jesse não é exatamente uma pessoa burra, mas que tipo de pessoa inteligente desafia pela preguiça um professor brilhante? Uma pessoa inteligente que tem preguiça de aprender e a arrogância de achar que basta misturar Cristal e orégano para manter o vício e a preguiça. É interessante como Walter White demonstra Timé (honra) e Areté (excelência), duas qualidades dos heróis gregos, no episódio final. Não passaria pela cabeça dos gregos de Homero ou de Sófocles (ou dos medievos em Game of Thrones) deixar de usar manipulação, mentira, violência para garantir a honra e a excelência. Da mesma forma, não passaria pela cabeça deles a esperança de escapar sem punição. Marcante é o quanto essas duas palavras são exercidas de forma diferente, em cada época, em cada narrativa. E como as consequências mudam. E como os criadores de séries não podem ignorar a época em que seus personagem matam, manipulam, mentem. Algumas pessoas que pretendem escrever séries dramáticas são indiferentes a aprender a lidar com mercado, marketing, fãs. Não entendem que o mercado, o marketing, os fãs são uma tradução do público que sustentou, antes das séries, todos os grandes escritores. Quando participo de experiências como a da Escola de Séries – que tem como centro a narrativa do século XXI e o público em escala – me sinto realizando um pouco o sonho de Monteiro Lobato. O sonho de que o Brasil pode aprender com o melhor dos Estados Unidos e com o melhor da tradição clássica. É muito estimulante estar junto com o time da Escola de Séries porque é gente que entende o quanto este tipo de narrativa depende de atuar em equipe. Depende de entender a indústria e depende de empatia com o grande público. Nós brasileiros fizemos a melhor telenovela do mundo. Agora estamos aprendendo como fazer séries para brasileiros e para exportar. É bom fazer parte desse momento. É bom para mim o esforço de escrever histórias, identificar como as histórias são escritas e evitar a tentação de interpretar histórias e personagens. A interpretação é mãe do julgamento, o julgamento é o pai da ignorância, a ignorância é a morte do escritor. Histórias e personagens são o que mantém o sentido do mundo para mim. Já tentei as pessoas e a ficção do cotidiano em que vivem imersas, mas não funcionou. Só podemos triunfar sobre o que nos atormenta quando conseguimos entender como o tormento funciona. E para entender, só contando as histórias e pondo em ação os personagens que nos inspiram.