Spotlight
O cinema argentino, com o Clã, e o norte-americano, com Spotlight, mostraram, mais uma vez, como é possível contar histórias reais, só contando as histórias. Sem desviar do assunto, sem inventar teses sociológicas para o Silêncio dos grupos enquanto o massacre está acontecendo. Sem arranjar desculpas para os crimes individuais.
O mais importante, no entanto, é constatar, mais uma vez, como um bom roteiro é aquele que não cai em tentação de desviar da storyline que foi proposta.
Em Spotlight, nada de problemas domésticos dos apuradores, transas dos apuradores, detalhes da dura trajetória dos mutilados. Poderia trazer essas situações se a história fosse outra. Mas o filme é sobre uma história real de apuração jornalística, da qual se conhece o resultado. Tudo, no roteiro, precisa estar a favor disso.
A construção dos personagens em “Spotlight” é impecável. O vilipendiado que tenta denunciar a vilania é agressivo. Com isso fica desacreditado. Os jornalistas que são católicos e não vieram dos bairros pobres de Boston desejam apurar por causa do dever profissional, mas a revolta do sobrevivente é over.
Outra coisa me chamou atenção: só um outsider defende verdadeiramente as vitimas. No entanto, são os estabelecidos que conseguem denunciar o crime de forma competente.
Acho que isso tem a ver com o sofrimento. Quem é discriminado de verdade, como o advogado armênio, sabe como é duro ficar do lado de fora da festa dos locais, dos que pertencem aos grupos, instituições, patotas dominantes.
Ao mesmo tempo, são os jornalistas católicos e o editor judeu os que conseguem controlar o processo de denunciar os criminosos de cima a baixo. Sem precipitação. Por que? Porque está no perfil de personagens deles a qualidade da boa formação profissional na escrita. E nenhum antecedente de abuso.
Uma vitima de abuso sistemático não conseguiria fazer o que os jornalistas fizeram. Muito menos com a competência que os jornalistas tiveram.
Fico um pouco espantada em constatar como algumas pessoas sensíveis, criativas têm dificuldade de entender o que é o sofrimento que não mata, só aleija.
O abuso sistemático, principalmente o que começa na infância, quebra a alma de quem sofre dele. Especialmente, se o abuso sistemático é praticado por quem deveria cuidar, proteger.
Os sobreviventes (a palavra já diz tudo) seguem adiante, podem tentar ajudar os vilipendiados ou denunciar o abuso. Podem também fazer o mesmo que seus algozes.
Os que tiveram uma trajetória sem grandes percalços não entendem como funciona a hiper sensibilidade ou a agressividade reativa. Por isso, tantas vezes, quando escrevem, criam personagens melodramáticos, unidimensionais. Ou gastam falas e mais falas dos personagens “estabelecidos” interpretando as causas sociais das vitimas serem vitimas.
De outro lado, os que tiveram uma trajetória sem grandes percalços tendem a achar que suas dores pequenas, medias ou grandes são comparáveis aos de vitimas de crime. Aí criam situações na qual os sequelados agem e falam como se fossem iguais ao que passaram pela vida sem mutilações. Não são iguais. Certas marcas ficam para sempre.
Spotlight, nesse sentido, é uma lição de roteiro. O horror, a compaixão, a crítica devem ficar por conta do espectador, não são plantados por quem escreve.
Uma história forte, contada de forma competente serve para colocar os holofotes sobre o mundo em que vivemos.
E sobre a maneira como lidamos com os sobreviventes.
E sobre como nós lidamos com as notícias sobre os que estão desprotegidos.
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