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Mulheres poderosas

Assisti a um episódio de série que trazia a história de uma mulher velha, negra, pobre, mãe de uma mulher negra, rica, poderosa. A mãe, quando estava grávida dessa filha, comprou uma casa. Pobre e simples como ela. Um dia, um irmão chegou sem ter onde ficar. “Não se diz não para família”, pensando assim a mãe decidiu abrigar o sujeito.

Uma madrugada, ela acordou e ele estava saindo do quarto da filha. No mesmo instante, ela soube o que havia acontecido.

No dia seguinte, mandou os filhos para a casa da irmã e quando o irmão dormiu, como sempre bêbado, como sempre fumando, essa mulher, em vez de apagar o cigarro dele, como havia feito em outras noites, tocou fogo no uísque. E a casa ardeu até o último taco. Com ele dentro.

A filha partiu, estudou, fez terapia com um psiquiatra branco, casado, que se apaixonou por ela, se separou da mulher. Os dois casaram. O psiquiatra “consertou” os traumas deixados por uma infância e adolescência infelizes, casou com ela e, eventualmente, a traia, a ponto de se envolver num assassinato. Quando ela o perde, liga deprimida para a mãe. A mãe vem socorrê-la, no seu jeito de mulher durona, como costumam ser muitas mulheres que têm traumas que não são imaginários. Traumas da pobreza, da violência, da discriminação.

Ocorre que ela coloca o marido que a “consertou” e sua vida de negra rica num pedestal e não perdoa a mãe não ter cuidado dela, não perdoa o machismo da mãe que acha que os homens tomam tudo e as mulheres cuidam, protegem, acolhem. Depois que ela pinta e borda em cima da mãe no seu ressentimento de filha psicanalisada e intelectual, a mãe analfabeta e, talvez, meio caduca, avisa que vai embora no dia seguinte. A negra magra e sofrida penteia os cabelos pixaim da filha e conta como as mulheres, às vezes, precisam queimar seus sonhos para vingar um mau feito.

Estou escrevendo isso porque me ocorreu como é bom para um escritor não ter simpatias. Quem simpatiza é cúmplice das pessoas que acha simpáticas. Simpatizar significa tomar um lado.

Simpatia e cumplicidade com a filha impediria de mostrar a força dessa mãe que não acredita na justiça humana, mas é capaz de matar pela filha.

Simpatia e cumplicidade com a mãe significaria não entender o quanto a impossibilidade de se contentar com a justiça aparentemente divina, o estuprador ser queimado vivo, fez com que a filha vagasse longe dos seus, prisioneira de um salvador que não a salvou de verdade.

Penso que um dos motivos pelos quais é tão difícil roteiristas brasileiros escrevem séries dramáticas convincentes é a nossa mania de simpatizar com ideias e consequentemente, com personagens que combinam com essas ideias.

Quem tem ideias e simpatias pode ser um bom juiz, dificilmente um bom contador de histórias.

Eu, pelo menos, não conheço um cúmplice que seja bom contador de histórias. Não digo que não exista. Não é porque eu nunca vi uma fada, um duende, um Papai Noel de verdade que posso afirmar que eles não existem.

Por outro lado, não confio em cúmplices. Acho que cúmplices podem ser bons de agitação e propaganda, como se dizia nos meus tempos de militância política. Cúmplices podem ser bons em ações sociais bem ou mal comportadas.

Pessoas com simpatias e boa escrita podem ser excelentes articulistas e administrar carreiras de sucesso com milhares, centenas de milhares de seguidores.

Só não vão contar histórias. Porque a profissão entra em antagonismo com simpatias e cumplicidades.

Vejo muitas mulheres acreditarem que ser poderosa é estar do lado “correto” da batalha.

Outras acreditam que ser poderosa é ter muitas cúmplices.

Engano puro. Ser poderosa significa ter coragem de dizer e fazer o que se considera necessário. E aguentar o que vem depois.

A desaprovação, o isolamento, a falta de cumplicidade. Ninguém é cúmplice de quem faz o que deve ser feito, se o que deve ser feito não merecer aplausos ou likes no FB. A pior consequência, é claro, é a solidão.

Quando uma mulher exerce o poder, qualquer tipo de poder, precisa estar preparada para sobreviver sem aprovação. E precisa ter coragem para dispensar a cumplicidade.

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